Algumas vezes, não muito raras, a princípio não se arrependia. Quando o farol de seu carro iluminava o canto abandonado e vazio onde aquele carro capenga (o qual ele dirigia com tanto orgulho) deveria estar - e não estava, já sentia um leve conforto e alguma esperança de poder finalmente ficar na sala com sua mãe, conversar e, se desse sorte, até mesmo ver um filme.
Quando ele ficava até altas horas no bar, com seus tão queridos companheiros, "amigos de verdade", ela se sentia leve, feliz e à vontade. Não pela desgraça disso tudo, mas somente pela ausência dele, o que ela tanto prezava. Claro, esses sentimentos a invadiam rodeados de culpa, e assumí-los era difícil, mas quem podia culpá-la? Tudo que queria era sua paz, e quando a tinha, se felicitava. Mesmo sabendo que no fundo preferia poder chamá-lo de pai sem sentir nojo, desprezo. E mesmo sabendo que ele iria voltar.
Ele também, sempre voltava.
Essa era a pior parte da noite. Claro, enquanto ele não aparecia, ela não desgrudava de sua mãe, aproveitava cada precioso momento a sós como se fosse único, o último, com conversas, idéias, perguntas e risadas.
E claro, quando ele voltava, bêbado e amargurado, por mais distante que ela estivesse, não conseguia desprender a atenção das conversas (as quais na maioria das vezes era muito fácil de ouvir, já que eram aos berros), sempre se assustando com o silêncio e sentindo medo. Medo da loucura daquele, dito pai, estar fora de controle. Medo de seus berros e de sua violência. Um medo maldito que a acompanhava até mesmo em seus sonhos.
Porém sabia que só sentia medo pois nunca soubera de ele ter batido em sua mãe, só sabia das coisas quebradas pela casa. Sabia que dificilmente ele tocaria um dedo nela (enquanto a loucura estivesse "controlada") e sabia que se ele ousasse, o medo que ela sentia sumiria facilmente, sendo substituído por uma ira incontrolável que definitivamente seria devastadora e descontrolada, provavelmente terminada em morte. E era por isso que tinha tanto medo.
A pior coisa de tudo isso é que ela sabia que ainda não havia como essa situação mudar. Ele não tinha pra onde ir, não tinha dinheiro e nem como se sustentar. Por enquanto continuaria em sua casa. E continuaria bebendo, gritando, xingando e quebrando coisas. Porém quanto mais tempo passava, intimamente mais ela acreditava que tudo se resolveria. Ela via que sua mãe não o amava mais, e ela sabia que tudo que faltava era tempo e dinheiro.
Então ela se contentou em, ao menos por um tempo, se empenhar somente em tirá-lo de seus sonhos, e tentar idealizar uma imagem dele longe, distante, constante e muito, muito mais amigável.
Por enquanto isso bastava.
Por enquanto.
Qualquer semelhança com fatos reais é pura coincidência. Narração meramente fictícia. E sim, uso trema e usarei até o final do ano. A lei que me impeça!